domingo, 2 de junho de 2013

A VELHA

A Tia Maria Adelaide era velha, muito velha, há muito tempo. Dir-se-ia que era eterna. Clara só se lembrava dela assim velha, mas toda a gente sabe que, para uma criança, qualquer um que ultrapasse os vinte está caquéctico.
O seu cabelo era branco como a neve, espetado no ar, aos caracóis estranhos. As suas rugas eram as mesmas desde sempre. Era alta e andava sempre direita, era uma senhora de boas maneiras e fazia questão de o exibir. Dizia-se nazarena, e orgulhava-se de andar com as sete saias, que a própria fazia (uma costureira que se prese não confia a sua roupa a uma outra qualquer). Ao peito, como se de um broche se tratasse, trazia um conjunto de alfinetes e agulhas que considerava indispensável. No entanto, usava-os mais para assustar os miúdos: “Se se portar mal, eu pego numa agulha e pico-lhe a mão.” O conjunto dava-lhe um ar de matrona um pouco assustador.
Era uma pessoa difícil. Era de opiniões extremas e em constante mutação. Era perfeitamente capaz de caracterizar como “horrível” e “lindíssimo” a mesma coisa numa questão de minutos, se bem que a tendência era para os comentários depreciativos.
Vinha conhecer “o noivo da menina Maria Clara” e ver a casa para escolher o tecido para as cortinas, capas de sofá e colchas de cama que iria fazer. Anunciou a sua visita com uma semana de antecedência, o que em termos práticos significava que Clara estava à beira do delírio há uma semana:
·         Lavar a casa toda.
·         Tirar a toalha bordada da arca
·         Prato: Bacalhau à Gomes de Sá
·         Bebidas: vinho verde; Porto; licor de tangerina do pai
·         Sobremesa: gelado de frutos silvestres
·         Fato e gravata para ele
·         Vestido e lenço para mim (a Tia Maria Adelaide gosta de me ver assim)
Tiago já tinha desistido de tentar ajudar. Sentou-se no sofá com a gata no colo. Ela adorava-o, tal como todos os animais. Entendiam-se perfeitamente, ambos achavam aquela agitação desnecessária, no entanto questionar “a dona” nestes momentos (e nos outros) nunca é boa ideia.
Quando a convidada de honra bateu à porta, o mancebo lá foi abrir com o seu sorriso descontraído. A gata farejou desconfiadamente a intrusa, mas lá acabou por dar a sua aprovação. A Tia Maria Adelaide olha-o de alto a baixo, reparando nos pelos de gata no fato e no cabelo um pouco comprido em desalinho, e segreda entre dentes “artista”. Isso fez crescer ainda mais o sorriso do jovem (não lhe tinha sido revelado que naquela família tal não era um elogio).
O almoço correu bem dentro dos possíveis. Clara cozinhava impecavelmente e os dois grandalhões adoravam comer… e beber. Ela admirava-se sempre como é que uma senhora velhota conseguia beber o triplo do que ela, e nem assim se embebedar ou ganhar problemas de saúde. Não ficava sequer “bem-disposta”, se bem que o desejavam secretamente… talvez assim moderasse a sua língua afiada…
Como não podia deixar de ser, lá perguntou por futuros filhinhos, com aquele ar de quem diz “a menina está atrasada, olha que assim ainda a trocam”. Para alívio da sua amada, Tiago lá deu uma resposta evasiva e agradável aos ouvidos. Ele tinha verdadeiramente jeito para pessoas.

A conversa prosseguiu mas Clara já não estava a prestar atenção. Na sua mente via criancinhas a correr na sua casa e a Tia Maria Adelaide, tal e qual ao que sempre foi, tal e qual ao que sempre será, eterna.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

A CASA


Era uma vez uma casa perto da foz de um rio.
Não era uma casa muito grande, nem muito vistosa, era uma casa entre várias casas à beira-rio. Caiada de branco e com belas janelas por onde espreitava o sol pela manhã, cheirava a sal e aos eucaliptos da mata.
Nela vivia um jovem casal. Ela era pequenina, com os olhos azuis esverdeados e o cabelo castanho claro de quem foi em tempos loira. Gostava de flores, tinha rosas creme, lírios, vaidosos narcisos amarelos e delicados brincos de princesa fúcsia. Cuidava também das ervas aromáticas, o alecrim doirado, a cheirosa alfazema e a salsa, imprescindível a um bom cozinhado. Já as árvores de fruto cabiam-lhe a ele. Era alto e forte pelo que não lhe era difícil apanhar os frutos, ou espetar as estacas das novas árvores. Ele mesmo tinha olhar de árvore, nuns serenos tons de castanho e verde.
Talvez tenha sido essa fauna original que atraiu a gata, talvez apenas a simpatia dos seus cuidadores. O que é certo é que a casa ganhou mais um morador.
A gata andava como quem dança, passos leves e esvoaçantes, silenciosos. Não se dava por ela senão quando se queria mostrar. Castanha, malhada, camuflava-se na “selva” da qual era rainha.
Atrás da realeza surgiram vários pretendentes, de todas as cores e feitios: do vira-lata tigrado de laranja e amarelo ao branco puro do persa da vizinha, passando pelo preto gigantesco, que tal como uma pantera, adorava aparecer durante a noite, com os olhos amarelos a brilhar na escuridão.
Embora a todos desse treta, a verdade é que a gata preferia ouvir os vinis de música clássica no conforto da casa às miadelas constantes dos seus apaixonados. E a assim, a gata da rua passou a ser a gata da casa.